A caixa
#conto #ficção
Eu não via nada além do container. Estava de noite e a iluminação era fraca, havia apenas umas poucas luminárias de ferro em formato de chapéu de camponês chinês, como a que eu comprei alguns anos antes de uma antiga fábrica do Rio de Janeiro. Só depois de comprar foi que me dei conta de que, apesar de linda, ela não servia para iluminar a sala de jantar, só a mesa abaixo dela. As luminárias sobre o container me deixavam ver apenas partes dele. Fora do raio dos focos de luz, era um escuro de meter o dedo no olho, como minha mãe dizia quando eu era criança. Claro que olhei em volta para tentar entender onde eu estava, mas não consegui enxergar muito. Sei que não havia nada mais, só aquela enorme caixa de ferro.
Containeres sempre me chamaram a atenção, nunca soube exatamente o porquê. Acho que até aquele momento eu nunca tinha estado de frente para um, de frente mesmo, a uma distância curta o suficiente para tocá-lo. Container é coisa de área portuária, e não havia mar na minha cidade. É estranho dizer isso, parece até meio idiota, mas naquela noite, de pé diante daquele objeto imenso, a minha sensação era quase de um déjà vu ao contrário. Havia uma completa inexistência de algo remotamente familiar naquela situação, e era esquisito sentir isso, especialmente com algo tão banal, era só um container de carga. Estranhamente alto, é verdade, fora de proporção. Lembro de nunca ter me sentido tão pequena.
O lugar onde estava era tipo um galpão. Parecia, na verdade, com a quadra coberta do colégio onde eu estudei entre a 5º série e o 1º ano. O cimento da quadra era fino como papel. Quando chovia, alagava em volta e enchia de girino. A diversão do recreio era observar os girinos.
Arrodeei a caixa tateando-a com atenção, nenhuma porta. Me afastei para olhá-la de frente. Parecia não ter aberturas, só ferro. Mas aí, de um dos cantos menos iluminados, percebi que da parte de cima do container saía uma luz fraca, como se fosse de TV ou de computador. Era ele lá dentro, eu tinha certeza. Devia estar fazendo alguma coisa ao computador, como sempre, como se nem estivesse ali, sem perceber minha existência do lado de fora, como nos últimos tempos. Intermináveis tempos.
Eu me sentia cansada, emocionalmente cansada, mas queria ver se era ele mesmo. Eu sabia que era, intuitivamente tinha certeza, mas queria ver, ou me fazer ver, não sei bem. O problema era vencer toda aquela altura do container, sem nada por perto onde eu pudesse subir. Sorte, pensei, que eu estava na minha fase mais atlética, embora nunca tenha sido atleta. Sem trabalho, longe da minha cidade, eu tentava não afundar em mim mesma. Dizem que a única forma de não sucumbir à areia movediça é ficando parada. Acontece que fazer atividades físicas, correr, principalmente, era a minha forma de permanecer parada na minha própria vida. Enquanto postava fotos tiradas durante ou logo após a corrida, eu fingia para mim mesma não saber porque corria. Sempre fui atraída pela imagem da areia movediça, assim como a do container, e nunca consegui entender porque elas, as areias movediças, eram tão recorrentes nos desenhos animados que eu via na TV na década de 80. Eu tinha medo da areia que engole pessoas. Quão parado é o suficiente para não ser engolida? Que distâncias eu precisava correr para continuar parada onde estava?
Enfim, na época, além da corrida, eu fazia kickboxing. Tava na moda. Fiquei tão magra que era quase só cabeça. Sobravam umas gordurinhas localizadas na região da cintura, que me lembravam insistentemente da minha insuficiência e do meu excesso. Eu não estava suficientemente magra. Eu não cabia. Mas naquela noite, naquele galpão, o resultado das minhas corridas haviam de me servir, pensei. Resolvi escalar o container. Me afastei olhando fixo para ele, como se a vida fosse um daqueles infográficos digitais dos especiais onlines do The Guardian em tempo de Olimpíadas e minha mente fosse calcular a distância versus a altura, e mandar os dados para o meu cérebro, que faria o serviço final de coordenar minhas pernas, meus pés e meus braços, sei nem em que ordem.
Quando achei que tinha tomado distância suficiente, corri em direção ao containe, coloquei a ponta do pé esquerdo na parede de ferro, estiquei os braços e caí, surpresa com o quão pouco consegui subir.
Me afastei de novo, novamente sem virar as costas para o container, e tentei de novo, desta vez com o pé direito, claro, como é que eu achei que ia conseguir escalar aquilo usando o esquerdo se eu sou destra. Subi um pouco mais. Insuficiente. Tentei de novo. Várias vezes. As paredes da caixa eram frias e lisas, eu simplesmente não conseguia escalá-la, me sentia em um daqueles sonhos infantis em que você tenta correr mas não consegue sair do lugar. Ou tenta sair da areia movediça e percebe que é impossível, a não ser que alguém te alcance com um bastão e te puxe pra fora. No galpão, não havia ninguém para me ajudar.
Lembrei agora uma coisa curiosa… Quando caí da última vez, me dei conta de que não ouvia nada. Eu não estava surda, só não havia som, ainda que muito barulho estivesse sendo feito. Era como um choro engolido. Tudo era irreal e real ao mesmo tempo, era difícil acreditar que pudesse ser isso mesmo, mas era. Eu sabia que era real por causa do frio do metal do container na minha pele. Nunca gostei de frio. A primeira vez que saí do Brasil foi para Nova York, era dezembro, eu não tinha casaco, usava um sobretudo de uma tia, que cabia duas de mim e não esquentava meia eu. Cheguei sozinha, à noite, sem lugar certo para me hospedar. Nunca esqueci aquele frio. Era um frio que me invadia e chegava ao centro de mim ou algo perto disso.
A sensação fria do container me era familiar. Era como se, ao sentir a temperatura do ferro na pele e ser inconscientemente remetida ao que senti naquela primeira noite solitária em Nova York, eu conseguisse entender o frio dentro de mim. Como se eu tivesse acabado de adquirir um novo vocabulário para expressar uma ideia que eu já tinha, mas não conseguia formular direito porque não existia uma palavra para ela.
Depois de tentar de todas as formas escalar as paredes da caixa de metal, me rendi e me deixei escorregar até sentar a bunda no chão, em prantos. Ele continuava lá dentro, eu não tinha dúvidas. E sabia que ele sabia que eu estava ali, e essa era a pior parte. A mais inacreditável também. Sentada no chão de cimento fino, costas encostadas no ferro frio do container, chorei, sem forças. Era ele quem estava na caixa, era eu que não conseguia sair.
Um dia, quando a imagem do container ainda estava diariamente presente na minha vida, um professor de um curso que eu fazia pediu para que escrevêssemos uma pequena história sobre nós mesmos. O container não deixava espaço em mim para mais nada. Me consumia. Eu mal existia para além dele. Escrevi a respeito, um pequeno texto chamado A Caixa, um início de história, sem meio nem fim. Eram um ou dois parágrafos em terceira pessoa e eu me chamava Charlotte, nome da minha gata. O que eu achei mais interessante, disse o professor em sala, é que é ela, não ele, quem está presa à caixa. Era óbvio, mas, até então, eu não sabia. Concordei sem comentar pra evitar que o desconforto se prolongasse, como se fosse possível.
Tentei várias vezes escrever mais sobre a caixa. No começo, porque, como disse, não havia espaço para mais nada em mim. Depois, porque me atormentava. Mesmo quando ela já não existia mais em mim, a não ser como memória, ainda não conseguia entendê-la, entender como havia surgido e por que tinha permanecido na minha vida. Tentei transformar em roteiro de curta-metragem, com outros nomes, outras histórias. Mas não conseguia ir adiante por não conseguir definir o que aconteceria no final. Como terminar? Que ela iria embora daquele galpão e deixaria a caixa para trás, era certo. Mas não era o fim.
Com o tempo, deixei o container pra lá, mas não a sensação do ferro frio na pele. Um dia, entendi o frio e a caixa de ferro e achei que, enfim, poderia escrever sobre ela.
Semana passada, encontrei com ele, o cara do container. O mais banal dos encontros, numa fila de supermercado. Eu nem o tinha visto, ele que veio falar comigo. Foi no sábado e eu não consegui inventar uma desculpa para não trocar 15 minutos de conversa na calçada, depois de passar as compras pelo caixa. Fiquei com a impressão de que ele queria desfazer alguma imagem ruim que eu pudesse ter dele, talvez tenha ficado incomodado depois que eu parei de segui-lo nas redes sociais e no Medium. Estava falante como eu não me lembro de ter visto um dia. E não estava em crise de depressão, fez questão de me contar.
A conversa foi curta, acho que durou menos até que 15 minutos, não tenho certeza. Mas só eu sei o tamanho da impaciência que foi me tomando. Me irritava o jeito arrumadinho dele de se vestir, de falar de si, de falar do valor que ele dá à beleza das coisas e de dizer que não frequenta mais o restaurante japonês caríssimo que ele tanto amava porque a crise econômica do país havia forçado os donos a abrirem também para o almoço. Na avaliação dele, a qualidade do atendimento tinha caído por causa disso e não valia mais os R$ 300 que ele deixava lá quase toda semana, tadinho.
Eu mal falei, não conseguia. Não porque me sentisse intimidada, não era isso, era a raiva que me enchia o peito que calava a minha voz. Raiva de toda a violência contida naquele small talk, naquele tonzinho de voz simpático, como se nada, como se fosse só isso, dois conhecidos trocando algumas palavras num sábado qualquer. Raiva de não conseguir me livrar dele e voltar para os meus planos iniciais: Aproveitar o dia nublado para cozinhar, tomar um vinho e ver série de TV. Ele falava sem parar e eu gritava muda dentro de mim.
O sangue do nariz dele espirrou na minha blusa. Minha mão, manchada de vermelho quente, doía um pouco. Bem que ele dizia, quando eu voltava das aulas de kickboxing, que tinha medo que um dia eu batesse nele. Agora sei o final da história, mas já não sinto mais necessidade de escrevê-la.