Passarela

Juliana Colares
3 min readApr 22, 2021

Cabeça baixa, ele decide pegar o caminho da longa passarela a céu aberto que cruza quatro faixas de rolamento, seis duplas de trilhos e outras quatro faixas rodoviárias, chegando ao entorno do estádio. Caminha ao lado de Néti, que o observa, feliz de não ser notada, consciente de que o silêncio vem com a intimidade e a confiança. No início da subida, Néti decide falar, mas o barulho do trem que se aproxima a faz desistir. Não tem certeza de que o momento é para palavras. Mas o barulho dentro dela é alto e escorre para fora. Tô aprendendo violão, diz, quase gritando. O avô percebe que ela puxa conversa, mas Néti o conhece bem demais para saber que a atenção dele ainda não está totalmente ali, e vai devagar. Tava tentando tirar as músicas de Caetano e me dei conta de como as letras são bonitas, diz Néti. Veloso?, pergunta Amaro. Sim, Veloso. O avô concorda, tentando lembrar de alguma. Como faz para escrever coisas bonitas?, pergunta Néti, sobre coisas bonitas? Tipo, a estrada que vai dar no avarandado do amanhecer, diz ela, ou aquela… ela tenta acertar o ritmo: A voz de alguém que canta / A voz de um certo alguém / Que canta como que pra ninguém. Amaro desacelera o passo na subida da passarela, concentrado em ouvi-la. Acho que leio os astros por medo, diz ela, para me preparar, como se fosse possível se preparar. O silêncio que se forma entre os dois é tão grande quanto o barulho do trem que passa, agora sob seus pés. Pensou na vovó?, quer saber Néti. Amaro olha os trilhos. Nunca tive medo, diz ele, nem pensava em medo. Eu achava que se aprende a perder, diz Néti, quando perdi os bebês. No primeiro, achava que o baque era de não ter sido educada para isso. No segundo e no terceiro… não existe isso, não se aprende, diz ela. Passa outro trem, Amaro interrompe a travessia para vê-lo. Néti para ao lado dele. Sempre achei tão bonito, diz o avô num tom mais alto, trem, trilho, estação, tudo tão bonito. O trem termina de passar e deixa um breve silêncio. É absurda, minha filha, diz ele. A vida?, ela quer saber. A morte, ele diz, o nunca mais, o não volta. Temos esse problema evolutivo, enquanto espécie, ele continua, essa incapacidade. E no entanto é tão grande, ela diz. Imensa, ele concorda. É como se abrisse um portal na capacidade de sentir, ela avança. Dor, ele preenche. Não só, ela afirma, convicta. Não só, ele concorda, de verdade. Néti olha para Amaro, Amaro olha os trilhos, Néti olha os trilhos. Engraçado você puxar esse assunto, ele diz. Eu só falei de Caetano, ela ri. Às vezes eu me sinto preso dando voltas por dentro, ele diz, tocando o peito, pensando no que não disse, na resposta automática, na briga boba, em quando não prestei atenção. Talvez esse tenha sido o meu maior medo, diz ele, e eu nunca o olhei, não de frente, nunca de frente, e foi o que aconteceu, perdi tempo. Néti o observa com ternura. Por que você quer ter filhos?, pergunta o avô. Néti ri. Nunca me perguntaram isso. Ela continua o caminho pela passarela, agora de descida, ele a segue. Acho que para enxergar as coisas belas, diz ela, para ver com olhos novos, para olhar de novo para as estrelas. Você já olha para as estrelas, ele se apressa. Eu olho mapas, ela corrige. Passa mais um trem e o barulho dos vagões ocupa o espaço. Eles acham melhor assim e ficam, cada um, com seus ruídos.

  • Texto produzido durante o curso A escrita das vozes: monólogos, diálogos, polifonias, algazarras, de Veronica Stigger

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