Refluxo

Juliana Colares
5 min readApr 23, 2021
Otto Stupakoff. Medusa, 1985. Fotografia p&b. 58 x 47 cm

O som de trovão que saía de dentro dela a fez ir direto da consulta médica para a farmácia, que não era tão perto, nem ela tão rápida, sobre aqueles saltos agulha. Nas mãos de unhas roídas e sabugos feridos dobrava e desdobrava uma receita com os nomes de três medicamentos, um para gastrite, outro para azia e o terceiro para refluxo, que era o que mais a incomodava. Aquela mistura ácida não digerida que teimava em voltar à boca, que ela engolia de novo e que de tanto queimar, lhe tirava a voz por dias. Sâmia caminhava o mais rápido possível e as pessoas por quem passava na calçada iam parando e virando o rosto para olhar o céu, temendo chuva. Percebiam, intrigadas, que não havia nem uma única nuvem em quem colocar a culpa. Ignoravam que o som não vinha do alto. Ao contrário, se formava a não mais que um metro e meio do chão. Era efeito da voz de Sâmia, que havia sumido da garganta e agonizava no estômago, em ebulição, mergulhada em suco gástrico. Quanto mais queixos se erguiam a seu redor, mais Sâmia levava o dela em direção ao peito, envergonhada de suas trovoadas internas, que jamais anunciaram tempestade e sempre se extinguiram na velocidade da dissolução de sua voz. Nunca tão demoradamente quanto dessa vez.

De volta para casa, sob efeito dos remédios, ela encontrou o marido trabalhando, como sempre. Calado, como sempre. Indiferente, … Ela forçosamente compreensiva. Aparentemente compreensiva, embora não fosse disso que se tratasse, ela bem sabia. E engolia. Há tempos ele não a olhava nos olhos e não se empenhava em ouvi-la, mesmo quando ela se esforçava em falar. Nem quando discutiam. E o faziam com alguma frequência. A meia voz, que era como ela conseguia. Ele dizia que quem discutia era ela, ele calava. E era isso o que mais a irritava. A mania dele de fazer ouvidos moucos para que as palavras dela não ecoassem, no máximo se chocassem contra as paredes, caíssem no chão e, lá, se misturassem à poeira.

Parada à entrada do escritório dele, ela o viu igual a sempre. Tinha os olhos estacionados na tela do computador. Os ouvidos vazios. Nem um espasmo de sobrancelha para indicar que percebia a presença dela à porta. Um grande nada. Foi aí que aconteceu. O tronco dela dobrou para frente formando um arco, o abdômen contraiu até quase colar à espinha, as veias do pescoço saltaram, os olhos arregalaram, a boca se abriu e ela gritou. Um grito vomitado, regurgitado após tanto tempo sendo engolido. Um grito parido naquele instante, disposto, mesmo saído de um corpo cansado. Gritou o tudo. As palavras misturadas, às vezes confusas, como os restos de comida não digeridos no interior do estômago, desfiguradas pela imersão naquela espécie de lava viscosa que mantém aceso o centro do que é vivo. Gritou toda a indigestão, com aquela potência de dissolver o que toca que o ácido tem. Só depois do grito saído das entranhas, conseguiu endireitar o corpo. Passou o dorso da mão sobre os lábios e olhou para ver se havia restado alguma gota. Nem uma. E ficou surpresa com a força do jato.

Ele? Assustado, claro. Havia recuado a cadeira, cabelos em pé, pupilas dilatadas, queixo caído e boca seca. Agora eram as palavras dele que não encontravam ambiente para deslizar para fora. Vendo que ela se recompunha, se apressou em dizer alguma coisa que a recriminasse, qualquer coisa que significasse que ela estava errada, um interdito. Disse… louca. E viu o corpo dela entrar em uma nova convulsão, mais suave, mas que ainda assim lhe provocava espasmos, como a superfície do mar que tremula ao vento quando o tempo fecha. O rosto dela se transfigurou e da boca ele ouviu uma risada. Uma irrefreável risada, que ele sabia instintivamente traduzir em uma palavra. Dizia: patético.

Sem saber o que fazer com o riso-espelho que ela colocava à sua frente, ele quis voltar ao grito. O grito sempre foi mais fácil de censurar do que o riso. Ele tampouco lembrava, imediatamente depois, o que havia sido dito, as palavras em si, mas a potência daquela voz que vinha de dentro, que nem ele nem ela conheciam, havia atingido seus nervos, afastado os músculos dos ossos, grudado no fundo de sua calota craniana. Falou algo sobre os vizinhos, sobre a mãe dela, sobre modos. Modos. Disse que não conseguia olhá-la, como se ela fosse um tipo de Medusa, e ela rapidamente se imaginou com a mesma roupa que estava, um longo preto de mangas compridas e sandália de salto agulha, mas com cobras na cabeça, a face desfigurada pela boca aberta e as mãos crispadas ao lado do rosto, como quem grita e se assusta com o próprio grito. E achou surpreendente que ele a tenha visto exatamente como ela se viu no momento em que gritou. Satisfeita ficou de, talvez pela primeira vez, ter sido não só ouvida, mas vista.

Há tempos ela se sentia um tanto Medusa, aprisionada num corpo monstruoso por algum tipo de castigo divino, condenada à solidão e à incompreensão. E agora ele se assustava ao olhar para ela. E ela sentia prazer em petrificá-lo. Quando voltou da imagem que fazia na própria cabeça para escutar o que ele dizia, continuou a ouvir reprimendas, que assim não é jeito de conversar, que isso, que aquilo. Conversar. Nunca foi uma conversa. Como que se dando conta do que havia lhe causado tamanha indigestão, o afastou de si como se fosse um prato de comida estragada, exceto pelo fato de que já não o comia fazia tempo. Sâmia havia ouvido a própria voz. A do estômago. Entusiasmada com o que mais havia por conhecer, com as mudanças que a erupção do vulcão provoca na paisagem e com a extensão do seu alcance, disse-lhe que aquela sujeira, aquele vômito pegajoso que naquele instante delimitava a distância entre os dois, era, na verdade, dele, embora tenha sido ela quem o engoliu vezes seguidas. Ele que se reconhecesse naquilo, sentisse por dentro seu cheiro azedo.

Disse isso, girou nas pontas dos pés e saiu. Primeiro do quarto vomitado, depois do corredor, da sala, da porta, do elevador, do hall, do prédio. E se deu conta de que quanto mais se afastava, menos sentia o azedume, até não sentir mais. A garganta havia voltado a arder, mas não era a queimação do refluxo. Era a mucosa arranhada pelo grito. Sentia a chegada da ressaca do grito. A consequência do que excede o esperado e o proibido. Não se arrependia. Lembrava do riso, o riso que o desconcertou e contra o qual ele não teve argumentos. Pensou que talvez a rebordosa fosse menor se só tivesse rido, mas se deu conta de que o riso só existiu porque houve o grito. O estampido, o destampar provocado pelo grito. Pegou, então, uma das caixas de remédio que havia comprado na farmácia mais cedo, rasgou o invólucro, tirou uma pastilha sabor menta e colocou na boca. Percebeu a queimação aliviar. E não sentindo mais incômodo algum, se deu conta de que o sol forte ainda estava quase no meio do céu, parou num boteco e pediu um chope gelado.

  • Escrito durante a oficina de criação literária “Então eu grito”, de Veronica Stigger.

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